O Semi-Estado em Lenin

Nos seus pouco mais de dois meses de existência, antes de ser massacrada pela reação burguesa, a Comuna de Paris (1871) atingiu na essência aquilo que alimenta a máquina estatal burguesa, liquidando sua burocracia e seu Exército Permanente. No lugar de um funcionário de carreira, alguém com salário de um operário médio e podendo ser removido a qualquer momento. Em vez de Forças Armadas separadas do povo, um povo organizado e de armas nas mãos.
O conceito de semi-Estado de Lênin em O Estado e a Revolução é similar ao definhamento do Estado extraído por Engels da experiência da Comuna [1]. Escrita as vésperas da Revolução de Outubro, a obra ataca duas frentes opostas: a reformista e a anarquista.
Para a primeira, bastaria um governo com uma reforma política inclusiva para os trabalhadores. Para os anarquistas, a demolição imediata do Estado. Por sua vez, em acordo com a lição marxiana segundo a qual o Estado é um comitê para gerir os negócios da burguesia [2], Lênin contraria os reformistas ao defender a destruição do Estado burguês. Contra a imediatez do pensamento anarquista, reivindica um Estado transitório surgido dos escombros da velha sociedade, sem utopias e com claro objetivo em fazer avançar a linha revolucionária a partir das condições concretas da sociedade e grau de maturidade política dos trabalhadores.
Para Lênin, devia-se explodir a burocracia estatal e seu corpo militar, além de fazer avançar o poder dos trabalhadores organizados em posse do Estado transitório, apoiando-se nas decisões coletivas do qual o Soviete [3] seria expressão genuína. Ora, mas se é assim, como explicar o Estado policialesco em que se tornaria a sociedade soviética naquilo que passou para a história como stalinismo?
Semi-Estado e definhamento do Estado: uma diferença de graus?
Para Engels o Estado não é algo que se possa remover como fosse um objeto. O Estado não se extingue, mas se definha com ações concretas até o torná-lo ineficaz. Ele expressa a divisão da sociedade em classes, não para mediar seus conflitos, mas para garantir os interesses da classe dominante sobre os dominados [4] e perderá seu sentido quando não houver mais classes sociais. Porém, ele se justifica enquanto a burguesia deseje retornar ao poder, enquanto houver divisão entre campo e cidade ou mesmo para mediar conflitos individuais no âmbito jurídico [5].
Durante os dias da Comuna a burguesia e os reacionários fugiram para Versalhes e de lá, sob a chefia de Thiers, organizaram a reação contra os insurretos. Um duplo poder dividiu a França: o governo burguês de Versalhes e o governo operário de Paris. Para coroar a fraternidade entre os burgueses, a Alemanha, que se encontrava em guerra com a França, libertou milhares de soldados franceses para marchar contra os parisienses. Milhares foram mortos. A Comuna caiu, mas sua pedagogia ficou de pé ao mostrar o caminho para se por fim ao Estado, além de ter rechaçado o federalismo do anarquista Joseph Proudhon e o espírito de seita centralista de Auguste Blanqui [6].
No caso russo, outras questões se apresentaram. O poder da burguesia fora extirpado, mas as medidas draconianas que os bolcheviques tiveram que tomar deixariam sequelas na nova sociedade. Recordemos algumas delas.
Comércio da produção agrícola através da Nova Economia Política (NEP). Subdivisão na linha de produção [7]. Fim do direito de tendências no interior do Partido. Substituição de milícias populares pelo Exército Vermelho. Criação da figura do Secretário Geral [8], cargo assumido por Joseph Stálin após Trotski e outros nomes do Partido recusarem a nomeação. Essas, somadas a outras medidas, minariam a tensão dialética e necessária que havia entre três poderes: Estado, Partido e Sovietes.
Assim, enquanto o definhamento de Estado teorizado por Engels, sem maiores consequências práticas, assumiu seu aspecto formal com base na curta experiência da Comuna, o semi-Estado de Lênin teve que conviver com uma situação inusitada, três poderes em mãos revolucionárias, mas um primando pela ação direta (Sovietes), outro pela tomada do poder (Partido) e outro para oprimir a classe adversária (Estado). Estado e Partido poderiam se fortalecer, mas isso equivaleria enfraquecer os Sovietes. Fortalecer os Sovietes era dar vazão a teoria do semi-Estado. Era dar as bases para definhar o Estado. Venceram os primeiros. A Revolução se burocratizou. Em O Estado e a Revolução Lênin é enfático em conceber o semi-Estado enquanto poder gerido a partir dos Sovietes.
Mas a centralização em poder do Estado e Partido amparado num Exército profissional, mantido após o fim da guerra civil, demonstrou que o velho Estado reapareceu sob bases soviéticas. Claramente houve confusão entre poderes de naturezas distintas, sendo que o do Sovietes deixou de ser de fato poder para se tornar meramente um poder retórico. O Estado voltou a ser cultuado [9].
Dito isso, há de se tomar cuidado. Tecer essas palavras um século depois é coisa fácil. O que fazer frente a uma situação que exige soluções concretas é que é o difícil. Simplesmente dizer que o poder pertence ao povo e que no caso russo só o Soviete seria o verdadeiro poder nada resolve. Fosse assim, caberia perguntar onde estava este poder surgido em 1905 e que só reapareceu em 1917?
Organizações massivas como os Sovietes somente surgem em períodos explosivos de grande pauperização das massas, quando os poderes constituídos já não as conseguem engabelar mais. Já, o Partido [10] é o instrumento para esclarecer e impulsionar as massas à luta mesmo em períodos de reação e anestesia política do povo.
Ele é o órgão de independência de classe, pois forja sua teoria no conjunto da luta. Por isso, o Partido é imprescindível. Quanto ao Estado, não cabe aqui perder tempo se ele é ou não importante. Seria como dar ouvidos a um louco que quisesse criar uma lei para acabar com o Direito. A questão é: frente ao fato do Estado existir, que fazer? Tentar conciliar água e óleo como faz o reformista que fala em socialismo sem expropriar a burguesia? Fazer como o anarquista cuja utopia ignora o autoritarismo de um ato revolucionário ao se contrapor ao poder dominante [11]? Que ignora que os povos não chegam à Revolução ao mesmo tempo e que isso exigirá negociar com forças anti-revolucionárias?
Fechemos o presente trabalho recordando aqui Rosa Luxemburgo que ao criticar as medidas bonapartistas que Lênin e Trotski tomaram no curso da Revolução de Outubro nunca deixou de frisar que aquelas medidas duras expressavam a dureza da sociedade russa recém saída do passado tsarista para edificar uma sociedade socialista naquelas condições12. Enquanto outros líderes só fizeram discursos e teses, afirma Rosa, Lênin, Trotski e seus camaradas ousaram. Nesse sentido, o futuro pertence a eles [13].

Ninelino da Silva
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1 Prova disso é, durante a leitura, nos deparar muito vezes com a terminologia definhamento em vez de semi- -Estado. Contudo, sem nenhum prejuízo de uma concepção para outra.
2 Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels).
3 Conselho Popular. Surgido durante o curso da revolução de 1905, ressurgiu às portas da grande Revolução. Num primeiro momento era uma organização consultiva, depois se tornou deliberativa.
4 “O Estado é um órgão de opressão de uma classe sobre a outra” – Engels.
5 Cai o Estado, mas o Direito burguês persiste na primeira fase da Revolução. (conf. Programa de Gotha, Marx).
6 Contra o autonomismo de cada região preconizado por Proudhon, os Comunardos aprovaram a Assembléia Popular de Paris como centro de decisões. Contra o espírito de seita de um grupo iluminado, segundo a concepção blanquista, decisões coletivas em
praça pública.
7 O sistema Taylor de produção foi/é aplicado na indústria capitalista. Ele faz aumentar a produção e diminuir o controle do trabalhador sobre aquilo que produz, aprofundando sua alienação.
8 Medidas drásticas surgidas num contexto de guerra que combinadas com as derrotas proletárias no resto da Europa, especialmente na Alemanha, potencializou o poder centralizador do Partido em detrimento da auto-organização povo em Sovietes.
9 Culto ao Estado. Crítica que Engels dirigia aos dirigentes alemães de sua época.
10 Sua natureza insurrecional e conspirativa nada guarda em comum com certos epigonos a conclamar o povo a votar contra seus algozes. Contra os burgueses, o Partido Leninista é claro, bala neles!
11 Na polêmica com os anarquistas Engels sustenta que estes eram ignaros quanto à natureza autoritária de uma Revolução, pois esta é a supressão, pela força, de uma classe por outra. Por isso mesmo Engels desdenhava certas teorias anárquicas a clamar por um Estado livre uma vez que, havendo Estado não se poderia falar em liberdade. Havendo liberdade, Estado já não haveria.
12 Daí, como salienta a própria Rosa, o risco de se transformar aquela experiência numa teoria universal.
13 Citação não literal do opúsculo “A Revolução Russa” de Rosa Luxemburgo.

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